Capítulo 4 - Família?


Aeroporto de Frankfurt – Século XXI

Como de costume Caliel acordou com seus olhos e ombros doendo. Também não era de se estranhar, passando metade da noite acordado para fugir do frio. Ele não tinha casa, suas roupas refletiam seu estado de corpo e espírito: trapos. Não tinha nada nem ninguém, era sozinho, só tinha um porta-retratos velho, o qual fora abandonado com ele quando era bebê.

Relutando-se em levantar naquele frio, Caliel pôs primeiro seu pé esquerdo no chão, seguido lentamente por seu pé direito, e logo após por seu corpo machucado em pé, o segurança do aeroporto apareceu no fim do corredor. Isso lhe dizia que era hora de sair dali.

Ao chegar na porta principal do aeroporto ele se espreguiçou, contorcendo suas costas para se despertar completamente, e começar sua caminhada em busca de comida. Ele julgou aquele dia como seu dia de sorte, pois, logo após olhar em volta, viu em uma lata de lixo um belo osso de galinha, com ainda alguns pedaços apodrecidos e cheios de deliciosos vermes em decomposição.

Caliel se deliciava com sua refeição matinal como se tivesse ganhado um presente. Sua euforia era tanta que ele nem percebeu um envelope branco com bordas em dourado que repousava em seu colo enquanto ele devorava o osso como uma hiena faminta.

Como tal envelope chegou em seu colo era um mistério, talvez tivesse caído enquanto ele remexia o lixo, logo após devorar seu café da manhã gorduroso ele limpava sua boca com as mangas sujas de sua camisa, mas a gordura era tão velha e viscosa que não saia de sua boca, ele então viu o envelope e limpou sua boca com ele. O amassou e jogou no chão, Sem perceber sua importância ou algo do tipo.

Espanando as migalhas com suas mãos magras Caliel se preparava para partir quando ele
finalmente se deu conta de que aquele envelope podia conter algo importante, julgando-o pelas bordas douradas. Para conferir ele o desamassou e o abriu lendo em seu interior um endereço que ficava próximo dali. Algo que ele julgava ser o horário estava escrito com letras vermelhas arredondadas: 10:30.Devido a falta do que fazer, decidiu procurar o endereço, afinal, poderiam haver pessoas pagando alguma recompensa pelo papel chique.

Ele só sabia o caminho mais longo para o endereço, por isso ele teve tempo de ver pelo caminho muitas coisas, dentre elas, ele parou ao ver uma vitrine, com bonecos de cera simulando uma família feliz, sentados em uma mesa bastante iluminada com um gordo e suculento leitão no centro. O tempo já estava bastante gelado. Uma questão de momentos até começar a nevar.

Ele ficou ali parado um grande intervalo de tempo, não estava nem chorando nem sorrindo. Era só um pobre mendigo parado, sem demonstrar nenhuma emoção. Em sua cabeça não havia pensamento ou lembrança, ele simplesmente não entendia aquilo.

Voltando ao seu trajeto ele tinha parado de pensar, só lembrava-se daquela imagem, era algo abstrato para ele, como a descrição de um arco-íris para um cego. Algo que ele sabia que existia, porém nunca o havia experimentado.

Aquilo era algo digno de pena, mas tal acontecimento foi logo ofuscado pela chegada de Caliel no endereço. Era uma enorme construção, com seu exterior ladrilhado com grandes peças de mármore negro.

“Estação Particular Krömmen Bhor” era o que dizia em letras metálicas na fachada. Caliel ficou pasmo com a beleza de tal construção, era algo imponente. A arquitetura era gótica, dando um aspecto de igreja medieval à construção negra detalhada meticulosamente por peças em ouro branco.

Caliel engoliu seco, mas queria entrar de um modo ou outro. Motivado por sua curiosidade ele pôs os pés no início da escadaria, que era cercada por imensos felinos feitos em uma pedra que se assemelhava a celestita.

Dois leões africanos entalhados com dourado estavam um de cada lado da imensa porta de madeira pesada. O cheiro da porta ainda era de eucalipto. Puxando a maçaneta branca com detalhes em prata a imensa porta se abriu de modo tão leve, como se fosse uma pequena porteira.

O interior o deixou ainda mais pasmo, afinal, tal construção não deveria ser completamente vazia. A única coisa ele podia ver era uma janela exatamente no meio do imenso salão.

O chão de mármore branco polido refletia a luz do lado de fora, que emanava da neve branca que caía, se não fosse Caliel, tudo estaria completamente escuro. Ele não sabia o porquê ou como a janela estava ali. Imaginou que estivesse pendurada, mas ela não se movia, e ele não via corda alguma.

Ela era preta e estava fechada, seus detalhes eram em jade o que seduziu mais ainda os olhos de Caliel. Hesitante a cada passo ele seguiu até ela, mas quando estava prestes a tocá-la a porta fechou atrás de si com um imenso estrondo. Imediatamente a janela se abriu com um movimento rápido e gracioso, irradiando uma luz avermelhada que iluminou toda a sala.

O envelope que ele segurava amassado em sua mão direita começou a ficar leve e quente. Caliel o soltou imediatamente quando começou a queimar sua mão, e foi quando a luz ficou mais intensa.

O envelope estava suspenso no ar, em frente a janela, como se tivesse sendo segurado pela tal luz avermelhada, as letras começaram a queimar em brasa, despedaçando o papel naquele mesmo momento.

Com uma luz tão intensa em seus olhos ele caiu no chão ao recuar de medo. Não viu nada mais... Ao abri-los novamente e olhar ao seu redor, Caliel se via em uma sala de estar aconchegante. Sob a iluminação trêmula da chama da lareira ele olhou ao seu redor, e ficou perplexo ao ver uma parede de cerca de 10 metros de altura, por 50 metros de comprimento que abrigava uma quantidade impressionante de diversas janelas, expostas como quadros.

O espanto de Caliel se agravou quando ele viu nas fileiras superiores uma janela negra
aberta, igual a que ele viu na estação. De repente a porta da sala se abriu revelando um senhor de meia idade, com tufos de cabelos em ambas as laterais de sua cabeça, penteados para trás. Os olhos do senhor eram azuis e cansados, entretanto, cheios de vida.

Ele carregava uma xícara de chá e vestia roupas escuras e largas. Deixando de lado a perplexidade de Caliel ele se pronunciou, com uma voz rouca:

_Qual a sua senha? – Caliel não entendeu, mas por algum motivo achava que era o que estava escrito no envelope.

-10:30 – ele respondeu rapidamente, em um tom quase insolente.

O velho levantou uma sobrancelha e pegou um pedaço negro de madeira no chão, próximo a Caliel, nela estava talhado 10:30, o senhor arregalou os olhos e olhou para Caliel. Pegou um pequeno livro de dentro de sua camisa, e sussurrando alguma coisa em voz baixa encostou no cadeado, que brilhou e se abriu. Caliel achou aquilo impressionante, mais foi interrompido pela fala do senhor:

_ Não estávamos esperando por você ainda... Quais são meus modos...? Meu nome é Gondolous De’goulle, o porteiro. Vou providenciar imediatamente um criado!

_ Criado? – Indagou Caliel sem entender nada do que se passava ali, e sentindo uma tremenda dor de cabeça.

_Sim, mesmo faltando alguns meses até o início das aulas você chegou... Então você pode aproveitar esse tempo livre pra comprar os materiais e tudo o mais... Porque essa é sua primeira vez aqui. Ah, esqueci de mencionar, vista este roupão...

Caliel não entendeu a frase até olhar para baixo, ele estava completamente nu, caído no chão, rapidamente ele pegou o roupão e correu para o canto da sala se tampando, arregalou os olhos e apontou para o senhor:

_SEU TARADO!!! – e tratou de por logo o roupão.

_ É normal essa reação, geralmente os alunos recebem os roupões junto com o ingresso, mais parece que você se apressou... Bem isso não importa... – E o senhor foi interrompido quando um homem baixinho usando um terno branco e gravata amarela apareceu na porta dizendo:

_ Criado Illik da casa dos Boncheümmer se apresentando, me chamou senhor Gondolous?

_ Sim Illik, parece que o herdeiro de Frankfurt dos Boncheümmer chegou mais cedo, quero que você o atualize sobre tudo, ele parece estar com um quadro de amnésia pós-porteal.

_ Mas o senhor não tinha aprimorado os portais para evitar isso senhor Gondolous?

_ Bem, parece que não está totalmente aperfeiçoada, tanto que ele veio parar aqui em casa, mas isso é compreensível, tendo em vista que é um descendente direto da nobre família Boncheümmer.

_ Bem, posso perguntar uma coisa? Do que vocês estão falando? – Falava Caliel sem entender nada, era lógico que o estavam confundindo com alguém, mais a idéia de se aproveitar daquela situação era iminente.

_ Senhor Boncheümmer, mil perdões, mais os portais não estão suportando o tempo, vou ter que fazer uma reforma geral neles, mas o senhor sofreu uma amnésia pós-porteal, então o senhor não deve lembrar-se de quase nada, mas não se preocupe Illik irá te explicar e cuidar de tudo. Seja bem vindo senhor...?

_ Caliel, mas creio que estão me confundindo...

_ O senhor está equivocado – respondeu o homem baixinho – O que mestre Gondolous falou está acontecendo muito ultimamente... Mas o senhor irá se lembrar com o tempo.

_ Está bem – disse Caliel querendo saber do que se tratavam tudo aquilo, decidiu prosseguir no jogo deles, mas algo o preocupava naquilo tudo, mas isso deixou de ser problema assim quando a barriga de Caliel soltou um ronco estrondoso que ecoou na sala toda.

_ Parece que o senhor está com fome... Vamos para a casa da família, lá pedirei que preparem para o senhor roupas, um belo almoço e um banho quente... Vamos indo?

_ Bem... Vamos... Adeus senhor Gondolous, e obrigado... – Caliel tentava se aproximar o máximo do que seria educação, ele tinha aprendido isso com alguns hippies na Praça de Frankfurt.

E Caliel saiu olhando para trás, vendo somente aquela lasca de madeira na mão do senhor Gondolous, ele estava confuso, com fome, mas algo lhe dizia que continuar lhe renderia algo produtivo. Passaram então por um longo corredor de paredes vinho e chão de madeira, o qual era coberto por longas tapeçarias elaboradas, com fiações complexas. As paredes eram cobertas por algo que lhe dava um aspecto de acolchoado, com alguns quadros nas paredes de paisagens, e mais paisagens... Melhor, fotografias, de muitas paisagens, aquilo intrigou Caliel.

Depois de uma caminhada de uns 2 minutos em total silêncio eles chegaram até uma porta grande, de madeira escura com alguns detalhes em uma madeira clara e fina, que Caliel não imaginava qual era, mas ao abri-la raios de sol entraram no recinto fazendo os olhos de Caliel serem semicerrados com o reflexo. Após se acostumar com a luminosidade Caliel ficou perplexo, parou de andar e só apreciou aquela vista.

Era algo fora do comum, ele nunca tinha visto nada tão deslumbrante. A casa onde estava se encontrava no alto de uma montanha altíssima, com campos verdes e um jardim de girassóis logo abaixo, logo depois havia um grande precipício que desembocava no grande mar cor verde claro que demonstrava sua força quebrando suas ondas contra a encosta de pedras marrom-escuras. Coelhos, cervos, e bezerros corriam livremente por aquele singelo local, totalmente cercado por água. Não devia medir mais que 5 mil metros quadrados, mais era lindo, uma pequena casa no centro, totalmente cercada pela mais bela natureza.

No mar que se encontrava logo abaixo golfinhos gritavam felizes e pulavam uns por cima dos outros, alguns cardumes de peixes felizes nadavam ali perto, estava tudo na mais bela sintonia, o sol brilhava pleno no céu azul. No horizonte havia delineado uma linha do que pareciam ser casas, e uma doca.

Um esquilo subiu por sua perna nua quando ele se aproximou da encosta do precipício, ele o acariciou e disse para o esquilo em sua mente: “é amiguinho, parece que este agora é meu lar também”, frase estranha, julgando que ele não sabia o que era um lar.

Caliel olhou em volta e não viu modo de transporte algum, mais isso não era um problema, ele não queria mesmo sair dali. De repente o baixinho, digo, Illik saiu da casa com algo que se assemelhava com uma carta, e a pôs no bolso. Ele virou para Caliel e disse:

_ Já Posso transmutar o veículo senhor?

_ Transmutar?

_ É... o senhor realmente precisa de escutar muita coisa... Vou começar, por favor, se afaste.

_ Ok... – Disse Caliel se afastando e levantando uma sobrancelha, de repente o homenzinho fechou os olhos e bateu as palmas da mão, abriu os olhos de repente e disse:

_ Technique de Vestibule - invoquer du véhicule volant - e logo em seguida suas mãos começaram a brilhar, e ele começou a abri-las lentamente, como se estivesse puxando algo, e um círculo negro estava se expandindo no centro de suas mãos, ele o abriu o bastante para passar uma bola de basquete, e o segurou na palma da mão direita, empurrando-o contra o chão logo em seguida. De repente o círculo desapareceu, e em seu lugar ficou somente a borda, que começou a brilhar e de repente, começaram a ser escritas palavras ao longo do contorno, que quando completou a circunferência brilharam e com um clarão, seguido por um barulho de fumaça se erguendo apareceu um tipo de motocicleta antiga.

Ela era vermelha com uns detalhes em preto, estava com o escapamento levemente modificado, como se tivessem o alargado. No banco havia dois capacetes, Illik pegou um deles e entregou o outro a Caliel, que não o aceitou em função do que tinha acontecido... Ele ainda estava em estado de choque.

_ Está tudo bem senhor Boncheümmer? – Indagou o serviçal preocupado.

_ C... Como voc... Você fez isso? – Disse Caliel totalmente estonteado.

_ Ah... Isso foi uma técnica de invocação, mais tarde vou te explicar tudo, agora venha, vamos ir embora... Quanto mais rápido partirmos, mais rápido o senhor ficará melhor.

Hesitante Caliel subiu na motocicleta, mas só porque o olhar do homenzinho o assustou, era como se ele dissesse “vamos logo ou vou perder a paciência!”. Sentando-se no outro banco da motocicleta e colocado o capacete redondo e preto ele resmungou:

_ Não vai adiantar de nada isso, vamos ficar rodando de “motinha” na ilha – Nesse instante o baixinho lançou um olhar confiante para Caliel e sorriu de lado. O surpreendeu acelerando a motocicleta de repente, fazendo-a empinar e Caliel se agarrar na sua cintura. Ele ia em direção ao precipício e Caliel gritava:

_ Não brinca... O precipício ta chegando perto! ... Para de brincar!! – Mas não adiantou, e ele acelerou mais e mais, quando de repente a motocicleta não trepidava mais, ela estava leve... Caliel fechou os olhos com medo, entrou em desespero e começou a gritar... Eles estavam em queda livre no precipício.

Mas Illik não parava de surpreendê-lo, quando ele tirou as mãos do guidão batendo as palmas novamente como ele fez antes... Caliel escutou claramente:

_ Technik des Impulses - feste Luft – Que logo após pronunciado fez as rodas da motocicleta rodar cada vez mais e mais. A água se aproximava, as rodas estavam quase soltando do eixo de tão velozes, e com um grande som de tufão, uma lâmina de ar circular se aproximava por trás, rápida como um furacão, passando por baixo das rodas.

Abrindo os olhos Caliel olhou em volta, buscando os restos mortais dele e daquele louco, ele viu tudo branco, achou que tivesse morrido, mas escutou em alto e bom tom:

_ Não é tão mal depois que se acostuma, não é senhor? – Caliel se intrigou e buscou de onde estava vindo aquela voz. Com o ar batendo veloz em seu rosto ele viu por entre as pálpebras semi-cerradas as costas de Illik, confirmando que ambos se encontravam realmente vivos. O branco que ele viu outrora eram as nuvens por onde estavam passando. Ele sentia o ar úmido e uma sensação de leveza tinha que concordar que aquilo era até muito relaxante.

Mas só essa sensação de prazer não convenceu Caliel, ele queria saber como estavam voando, e indagou de um modo ríspido:

_ Esse daqui é outro planeta, é?

_ Não, estamos na terra oras. Bem... Não tecnicamente, mas fora dela lhe garanto que não estamos.

_ Então como estamos voando? Posso ser burro, mais sei que motocicletas não voam, os hippies me ensinaram isso dentre outras coisas...

_ Essa pergunta é fácil... Mas não é correta, primeiramente não estamos voando... Olhe as rodas da motocicleta... – Caliel obedeceu e olhou para baixo, se esforçando para ver as grossas rodas de borracha da motocicleta. Ele observava que a extremidade inferior estava amassada, como se ela estivesse em contato com o chão duro e resistente de uma estrada de concreto, aquilo impressionou Caliel, era como se o ar que rondava as rodas tivesse se solidificando, foi só então que ele percebeu que os discos de ar estavam nas rodas da motocicleta, era como se eles fizessem parte dela. Estonteado Caliel comentou:

_ Isso é incrível, como você fez isso? – E teve como resposta um curto e grosso:

_ Espere! Vou te explicar tudo chegando na mansão, aliás é logo ali na frente, o senhor não está com fome?

_ Morrendo. Eu poderia até comer um javali inteiro...

_ Se é o que o senhor deseja, assim será, mais alguma preferência?

_ Você realmente leva tudo que eu falo a sério não é Illik? Mas você é um cara bacana.

_ Fico lisonjeado senhor. – E antes que Illik pudesse continuar agradecendo uma coisa negra apontou no céu azul, logo á frente no horizonte, era como uma lança furando os céus. Antes era só um borrão no longe do horizonte, mais a frente ele percebeu que se tratava de uma flâmula. Vermelha, tinha em seu centro a ilustração de um leão circundado por um grande número de felinos, todos tecidos em dourado.

De longe Caliel imaginou que as dimensões da flâmula não passassem de alguns centímetros, mas com o aumento da proximidade elas foram se expandindo, até atingir cerca de dez metros de comprimento, por dois de altura. Foi só nessa hora que ele tomou conta da altura que estavam do solo, não o tinha percebido antes devido ao fato de as nuvens tamparem a vista do chão todo. Mas ao saírem daquele conglomerado celeste Caliel pode observar o imenso castelo.

As muralhas imensas de pedregulhos maciços e escuros deviam medir cerca de 30 metros de altura, era imensa e resistente. No topo havia uma longa passarela, onde deveriam se agrupar os observadores e guardas durante uma batalha ou ronda, tinha uma largura que abrigava cinco soldados em pé, um ao lado do outro. De acordo com que descia a espessura da muralha aumentava, desde a inicial de 5 metros, até a base que tinha 15 metros de espessura.

Um grande lago circundava a porção leste do imenso território, tão longo que nem olhando ali de cima Caliel podia ver tudo. A imensa floresta de araucárias tomava o espaço de, segundo Illik, 700 mil metros quadrados, que ficavam perto da lagoa povoada por patos e peixes. Mas tudo isso, toda essa vegetação, do imenso território não era nada perto das construções.

Caliel queria saber o que era cada um daqueles prédios, alguns tinham chaminés que estavam constantemente sendo usadas, outros tinham pessoas entrando e saindo, aquilo tudo se assemelhava a uma cidade. Illik disse que apresentava todas as construções para Caliel logo após vesti-lo, alimentá-lo e dar-lhe um belo banho.

Se passou mais algum tempo de vôo tranqüilo por planícies, plantações, pomares, animais, e quando o sol apontou meio dia eles podiam avistar um palacete centralizado, formava um tipo de “U”, com duas alas laterais e a entrada principal no meio. Um belo jardim bem cuidado de Camélias Vermelhas dava um aspecto requintado à fachada. Uma fonte de água coberta por um chafariz decorava tal jardim, havia um caminho de pedras brancas e ao longo dele havia um grande número de pessoas enfileiradas, Caliel não as conseguia ver direito devido a altitude.

Enquanto Caliel olhava para baixo Illik começou a frear a moto e virando o rosto de lado disse a Caliel:

_Segure firme, vamos descer... – E com uma guinada Illik puxou a motocicleta, caindo em parafuso, tal coisa fez Caliel se contorcer de desespero, chegando próximo ao chão Illik puxou o guidão, e as lâminas de ar se expandiram formando bolsões de ar assim que Illik bateu as palmas das mãos, como antes.

Finalmente no chão Caliel caiu de lado ao tentar se apoiar sobre seus pés, o vazio em seu estômago combinado com tudo aquilo lhe tirou as forças. Imediatamente Illik saiu da moto e veio em encontro a ele, que sentiu suas pálpebras pesadas e caiu desmaiado no colo do homem baixinho.

Passaram-se algumas horas enquanto Caliel estava desmaiado, ele não pensava em nada especial em sua cabeça, só estava com muita fome. De repente sentiu algo como um metal vindo de encontro a sua boca, estava quente, ele simplesmente abriu a boca e deixou entrar. Tinha gosto de galinha, era algo como uma sopa, Caliel nunca tinha experimentado nada tão gostoso, abrindo os olhos devagar ele se encontrou em uma cama muito grande, de lençóis branquíssimos.

Uma senhora de uns 55 anos estava sentada na beirada lhe dando a comida deliciosa.

Ele tentou se sentar, mais ela pôs a mão delicadamente em seu peito, o impedindo, ele obedeceu, por que ela passava uma ternura quase angelical. Não trocou uma palavra com a senhora enquanto ela o alimentava, e limpava os cantos de sua boca quando escorria um pouco da comida. Assim que acabou, a senhora se levantou, recolheu todos os pratos, revelando atrás de si um imenso quarto, decorado inteiramente por madeira com móveis requintados de detalhes complexos, a iluminação era baixa.

A senhora se levantou com tudo e se retirou fazendo uma reverência, logo após sua saída o homenzinho entrou, fazendo com que Caliel se sentisse tentado a perguntar:

_Quem era ela? – Indagou ele, com a voz ainda um pouco rouca.

_Ela é sua criada, você se descuidou se levantando daquela maneira, a viagem é muito pesada para um iniciante, além disso, você estava com muita fome, e alguns ferimentos, mas já cuidamos de você. Assim que você quiser pode tomar seu banho, o banquete já está sendo finalizado.

_Banho? Mais onde eu estou? Quem são aquelas pessoas? Porque estão me tratando assim?

_ Como eu disse para o senhor, todos são seus criados, e estão felizes em servir o senhor, estão quase em êxtase por finalmente poderem servir o senhor deles, além disso, você está deplorável. O banheiro é no fundo do quarto – Disse ele apontando para uma porta logo a frente – Lá está tudo que o senhor precisa, e tudo já está preparado, as toalhas ficam ao lado da porta, e as roupas serão colocadas ali assim que forem trazidas, relaxe por um momento e tome um belo banho senhor. O senhor agüenta sozinho? Ou quer que eu chame as criadas para ajudá-lo?Nem todas são tão velhas como a que lhe alimentou. – Tal frase fez Caliel ficar confuso, demonstrando em sua face, fazendo Illik se explicar:

_ Mas elas vivem para servi-lo senhor, e até tem umas bem bonitinhas. É só dizer que providenciarei um harém se desejar.

_ Harém?

_ Sim oras, alguns nobres preferem tomar banho se “divertindo” com suas criadas.

_ Divertindo como oras?

_ Ahh você sabe... Mulheres peladas, homens pelados...

_ Porque eles estariam pelados? E o que acontece depois?

_ Ora, porque ele está no banho, e elas o acompanhando, aí enquanto isso, ele pode passar a mão nelas, beijar o corpo delas, LAMBER O PÉ DELAS... - Nesse instante Caliel se assustou com os olhos esbugalhados do homenzinho, e ousou perguntar:

_ Eu sei que pode parecer meio estranho perguntar isso, mas...

_ Pergunte, é natural, considerando sua idade e a amnésia.

_ Bem... Como é... Um banho? – Caliel falou com as bochechas vermelhas em brasa, e o homenzinho não ajudou, começando a gargalhar no lugar em que estava, apoiando na beirada da cama.

_ Hahahahaha, eu sabia que haveriam coisas assim, mais não pensei que sua amnésia fosse tão potente senhor... Hahahahaha, desculpa pelas risadas, mais não pude conter. Bem, creio que serão longos 2 meses até o início das aulas. Deixe-me explicá-lo, o banho consiste em se sentar na banheira, é um objeto grande de porcelana branca cheio d’água, nele o senhor vai encontrar ao lado alguns sabonetes, que são como tijolos, o senhor os passa no corpo, para limpar todas as sujeiras, logo após o senhor executar esse ritual pelo corpo todo, o senhor pode relaxar, e sair quando achar necessário, pegando os pedaços de tecidos brancos e passando-os no corpo para se secar.

_ Desculpe pela pergunta infantil... – respondeu Caliel

_ Não há problema, eu só achei engraçado, mil perdões senhor... Mas se tiver algum problema é só gritar, aliás, acho bom o senhor tomar um belo banho, o senhor está um pouco sujo. – Só nessa hora que Ambos olharam para o estado de Caliel, um garoto que se molhava somente com a água da chuva quando tinha sorte, e nunca havia tomado um banho decente em sua vida. Ele estava imundo.

_ Bem, então vou tentar... Obrigado por tudo Illik.

_ Não há de quê senhor. – Assim Illik se retirou do quarto, e Caliel foi calmamente entrando no banheiro com certa cautela, como se fosse um lugar amaldiçoado, e assim que a porta acabou de se abrir Caliel simplesmente congelou.

Era uma sala ampla, toda branca, impecavelmente limpa, o chão até refletia os objetos nele contidos. Dentre estes estavam a banheira de porcelana branca, como Illik tinha descrito, um vaso de bojo quadrado, e uma pia que se assemelhava a uma grande fonte, com água saindo pelas bocas de leões esculpidos nas paredes. Mas o que mais impressionava era a banheira, Illik a havia descrito corretamente, mas não suas dimensões. Tratava-se de uma banheira imensa, poderia tranquilamente abrigar várias pessoas. Caliel ficou intrigado com o fato de tudo ser exagerado naquele lugar, ainda mais para ele que sempre teve tão pouco.

Sem saber o porquê ele sentiu uma vontade tremenda de entrar ali, a fumaça saia de leve, demonstrando que a água provavelmente deveria estar morna e agradável. Tratou de ir tirando logo as roupas, que se rasgaram devido ao modo com que as tirara, ele não preocupava mais... Foi entrando e quando sentiu a água morna em seus pés quase entrou em êxtase, pôs logo todo o corpo e andou de um lado para o outro dentro daquela grande banheira que atingia-o até o peito.

De repente lhe subiu um tipo de alegria, um vigor, e ele começou a dar saltos de alegria...
Aquilo realmente estava acontecendo com ele! Ele fez tudo direitinho, demorou cerca de 3 horas no banho para tirar toda a sujeira, saindo de lá totalmente mudado.

Antes, devido a toda a sujeira que se acumulava nele, qualquer um diria que ele era moreno ou mouro. Mas depois do banho ele podia realmente se ver no grande espelho. Ele se assustou, aquele era realmente ele? Uma pele lisa e macia, com uma tonalidade de avelã, os olhos dele eram castanho-claros, com as pupilas quase felinas, sua feição era quase raivosa, com seus olhos semicerrados e sobrancelhas fortes e densas. Cabelos pretos, longos devido ao tempo que não os cortava, batiam no final da nuca, sua testa ficava coberta somente dos lados pelo cabelo. Ele era alto, cerca de 1.78, tinha um corpo magro, porém, não raquítico. Se vestido direito, realmente seria comparado a um membro da nobreza.

Fitou com o canto dos olhos as roupas que se encontravam na cama, as pegou e achou incrível a maciez e o tecido. Era uma calça de tecido largo, de cor marrom escura, como uma calça social. E uma camisa de linho bem tecida, com um brasão no peito, de cor branca e muito limpa. Caliel se sentia sem um peso nas costas usando aquelas roupas, parecia que ele tinha finalmente deixado aquela vida de sofrimento que ele tinha se acostumado para trás.

Sentindo-se renascido ele se apresentou no corredor, e viu duas moças de uns 19 anos vestidas em roupas de camareiras no fim do corredor, saindo de outro quarto. Elas pararam e juntaram as mãos quando o viram, e olharam para ele com o canto dos olhos. Mas não era um olhar de desdém que Caliel sempre estava acostumado, era um olhar de desejo, elas o achavam bonito. Tal sensação nunca foi experimentada por Caliel, ele se sentia realmente bem, ao passar por elas ele deu um sorriso de lado, e uma delas, a mais bonita suspirou de vergonha. Isso instigou ele a chegar mais perto do rosto dela, e foi percebendo que as bochechas lisas dela ficavam cada vez mais vermelhas.

De repente uma mão as puxou para dentro de um quarto, acabando com a curiosidade de Caliel. Mais a frente estava Illik encostado na parede jogando uma bolinha para o alto e a pegando novamente, e assim que Caliel se aproximou ele disse com uma cara de espanto:

_ Nossa! Bem diferente senhor, agora sim o senhor está digno da sua posição, é bom o banho não é?

_ Maravilhoso, me sinto renovado. E o que já disse antes, mas queria repetir novamente...

_ Deixe os agradecimentos para outra hora, primeiro vamos comer, o senhor deve estar morrendo de fome. – Nesse momento a barriga de Caliel confirmou soltando um ronco estridente, levando os dois a darem risadas da situação. Illik guiou Caliel até o andar de baixo, passando por diversas mobílias e adereços, como vasos de porcelana e quadros requintados, Caliel jamais se imaginou num lugar daqueles.

Chegando no andar de baixo, se dirigiram a uma grande porta de madeira maciça, dois criados se encontravam um em cada lado da porta, e assim que Illik balançou a cabeça eles abriram, cada um uma das portas, revelando a longa sala de jantar. Uma mesa de mogno bastante detalhada regia a sala, com espaço suficiente para abrigar confortavelmente dezenas de pessoas, com castiçais dourados iluminando, e uma toalha de mesa branca marcavam um lugar no centro da mesa. Illik apontou e disse para ele se sentar, e obedecendo se dirigiu até a cadeira, que foi puxada por um senhor que gentilmente abriu um sorriso no rosto.

Caliel se sentou e ficou com vergonha, só naquela hora ele pode perceber que haviam cerca de 10 criados na sala, somente olhando para ele. Illik se sentou na cadeira em sua frente de um modo despojado, e batendo palmas com as mãos gritou:

_ Podem começar com o banquete, o mestre está com fome. – Imediatamente saíram por uma porta no fundo da sala um grupo de pessoas, primeiro mulheres, com aventais vermelhos por cima de seus uniformes pretos e brancos. Elas traziam um tipo de bacia metálica e a puseram na frente de Caliel, que imediatamente cheirou e sentiu um aroma agradável, a pegou por cada lado e estava dirigindo à sua boca, como se fosse bebê-la, causando um alvoroço, o qual Illik pulou por cima da mesa e segurou a bacia dizendo assustado:

_ Senhor, isto é uma lavanda, é para lavar as mãos, não para beber. – Tal interrupção fez Caliel ficar com as bochechas vermelhas de vergonha ao dizer:

_ Desculpe, eu me senti atraído pelo aroma e senti uma vontade de beber.

_ Isso é normal considerando que a senhora Gullack que preparou a lavanda, mas se contenha, só lave suas mãos, todos os germes e micróbios nocivos serão atordoados. – Então Caliel obedeceu Illik, que cada vez mais falava com naturalidade com ele, isso o agradava, parecia que eram amigos. Depois de lavar as mãos uma das criadas que estava ao seu lado lhe estendeu uma toalha de mão, e ele secou ambas.

_ Já estamos preparados, pode vir o couver. – Batendo palmas novamente Illik fez com que as empregadas que estavam na sala saíssem e entrasse um novo número pela porta. Caliel imaginou quantos empregados haviam ali só para servi-los.

Entraram com bandejas prateadas e tampas semi-esféricas sob elas. As puseram na mesa e tiraram as tampas, revelando um pão cheiroso de tamanho grande, uma faca de prata, e algo em uma vasilha. Era preto e parecia uma pasta, que levou Caliel a perguntar:

_ O que é isto na vasilha?

_ Eu achava que o senhor perguntaria, isto é chamado de Caviar, o senhor parte um pedaço do pão e passa isto nele.

_ Ah! Obrigado, vou experimentar! – Então experimentou um pedaço grande de pão, ainda quentinho com Caviar, levando seu palato ao êxtase. Aquilo era muito bom, tanto que Caliel o devorou quase completamente em questão de segundos. Após acabar, perguntou a Illik:

_ Nossa! Isso é muito bom! O que é realmente isso?

_ Ah! O caviar é um alimento e iguaria de luxo, consistindo em ovas de esturjão não-fertilizadas salgadas.

_ Hãn? – Perguntou Caliel confuso.

_ São ovos de peixe frescos!

_ Ahh! Ovos de peixe frescos... É claro... Espera! Ovos de peixe? – Tal confirmação por meio de um aceno com a cabeça de Illik fez o estômago de Caliel rosnar, assim como quando ele comia alface estragada nos lixos.

_ Por que você não me disse isso antes?

_ Senhor, segundo você mesmo o senhor comia comida do lixo... Além do mais Caviar é uma iguaria muito cotada e rara, por que a repugna?

_ Por que eu como do lixo por questões de necessidade, e mesmo assim não gosto de comer algo que eu não saiba... Porque não me avisou antes?

_ Senhor, se for pensar assim, o senhor não comerá nada além de trigo e capim! O senhor deseja que retirem o caviar?

_Claro que não... Isso é muito gostoso, só não gosto de não saber a origem do que estou comendo. – Disse Caliel colocando o que ainda restava de caviar na boca e engolindo como uma hiena selvagem.

_ Vamos passar para as sopas então! – Disse Illik já mandando os empregados entrarem, mas foi interrompido por Caliel que dizia:

_ Ahh! Chega de entradas estranhas, vamos logo para a comida, estou morrendo de fome! – Tal interrupção fez todos no recinto arregalarem os olhos, até aquele momento Caliel não teve nenhuma atitude decidida como aquela, estava até educado demais para um morador de rua.

_ Se é o que o mestre deseja, tragam logo o prato principal! – E com uma pequena confusão na porta da cozinha uma imensa bandeja foi carregada por oito criados até a mesa, que ao retirarem a tampa revelaram um gordo javali, com uma maçã na boca. Caliel arregalou os olhos e
exclamou:

_ Quantas pessoas irão comer junto conosco?

_ Bem o prato é só para o senhor, mestre! O senhor disse que queria um javali inteiro, então mandei abater um para o senhor.

_ Illik, eu lhe disse que era brincadeira! Meu deus do céu! Não agüentarei comer nem um décimo deste animal, venham então, chame todos os empregados, vamos todos comer juntos.

_ Tem certeza senhor? Eles comem as sobras depois do almoço.

_ Não. Me sentirei mal comendo isso tudo e eles comendo as sobras, por favor, chame a todos.

_ Se é o seu desejo. – Então ele se virou para uma das empregadas e balançou a cabeça, ela imediatamente chamou a todos, e cerca de 30 serviçais entraram pela porta e ficaram de pé na parede inferior da sala.

_ Venham, sentem-se todos, eu quero que todos desfrutem deste delicioso banquete.

_ Mas senhor, não devemos, ficaremos aqui. – Disse a senhora que o alimentou mais cedo.

_ Não tem problema, eu não vou conseguir comer isto tudo sozinho, aliás de que eu quero muito conhecer a todos vocês e agradecê-los.

_ Seu agradecimento é desfrutar do banquete – Inferiu Illik.

_ Mas não é essa a minha vontade, eu me sentiria mal. Por favor, todos venham? – Disse Caliel com um tom um pouco mais agressivo, devido a falta de paciência.

_ Não senhor...

_ Ahh Chega! Venham todos logo, considerem isto como uma ordem então, eu estou com fome e vocês ficam ai neste “vou não vou”?

_ Senhor, já estão todos sentados, agora quer que retiremos o primeiro pedaço para o senhor? – Disse o Chef, surpreso como todos ali presentes com a atitude de Caliel, que trataram todos de se sentarem logo.

_ Não precisa! – Disse Caliel arrancando com as mãos uma das gordas coxas do animal e a devorando como uma pequena coxa de galinha. Todos os empregados ficaram atordoados, por toda aquela situação. Então de repente Caliel abriu os olhos e examinou ao seu redor, viu que ninguém havia começado a comer. E com a boca ainda cheia de carne ele disse com a voz alta:

_ Vamos logo senhores, está muito gostoso. Não quero comer sozinho. Aliás, não tem alguma bebida? – Disse Caliel, e ele não sabia de onde vinha toda aquela atitude, afinal nunca teve o que escolher. Parecia que o personagem realmente estava sendo adotado por seu corpo, quase como se ele quisesse ser daquele jeito.

_ Sim senhor, irei buscar – Disse Illik se levantando, mas a mão de Caliel o agarrou pela gravata antes que pudesse se levantar totalmente.

_ Illik, sente-se e aproveite a refeição, eu mesmo pego, onde fica?

_ Mas senhor...

_ Não discuta! Onde fica?

_ Fica no corredor da cozinha, na primeira porta a esquerda. – Disse uma garota de uns 23 anos, loira, bonita, aliás, todas as mulheres daquele lugar pareciam ser extremamente bonitas. Mas o que realmente importa é que ela prendeu a atenção de Caliel com aquele olhar firme dela, como se estivesse decidida do que estava falando. Com uma mesura ele disse:

_ Muito obrigado! Volto já. – Então se levantou e dirigiu até a cozinha. Chegando lá ele viu um lugar totalmente organizado, nem parecia que acabara de ter sido usado, e se encaminhou para a porta, ainda intrigado de onde vinham àquelas palavras que saiam de sua boca, e por que estava com aquela atitude.

Chegando a tal porta descrita pela moça ele abriu a maçaneta, e empurrou a porta, que rangeu um pouco ao ser aberta. E assim que pôs os pés dentro da sala ele percebeu que ela era mais fria que as outras, ela estava escura, e ele procurava um modo de iluminá-la, e viu ao lado da porta um interruptor, apertou o botão, assim como fazia na biblioteca pública os dias que dormia no sótão.

Desceu as escadas e encontrou vários barris, e mais ao fundo garrafas de vinhos, todos datados e organizados desta maneira. Como um leigo Caliel pegou cinco garrafas mais próximas e voltou á sala de jantar. Ao chegar se enfureceu ao observar todos olhando fixamente para ele, sem nem ter ao menos tocado na comida.

_ O que havia de errado com aquela gente? – Pensou Caliel consigo mesmo. E em um movimento súbito ele abriu a garrafa com custo e encheu um copo, o levantou e disse:

_ Porque não começaram a comer ainda?

_ Senhor, por isso eu disse que era uma má idéia, todos eles tem prazer em servir ao senhor, mas não é usual os servos comerem com o senhor deles. Eles não sabem como se portar.

_ Então eu proponho o seguinte, eu desejo que todos aqui presentes comam e bebam, festejem comigo, pois eu estou muito feliz de estar aqui. Mas não quero somente ser o senhor de vocês quero ser amigo, quero ser companheiro, por isso tratem como uma ordem! Que vocês se divirtam! – Ao dizer isso Caliel bebeu com um só gole a taça inteira de vinho, buscando aprovação ao redor ninguém reagia, mas para sua surpresa Illik se levantou da cadeira, pegou um pedaço de carne o levantou e disse:

_ Vamos comer! Se o nosso mestre ordena o faremos! – E festejando comeu a carne com gosto, fazendo com que os companheiros fizessem o mesmo! Alguns entraram na cozinha, e voltaram trazendo mais carne e vinho. Outros buscaram pão e algumas frutas, enchendo rapidamente a mesa. Um grupo de mulheres trouxe uma caixa, e dela começou a sair música. Elas rasgaram as barras de seus vestidos e começaram a dançar. Caliel gostava muito daquilo, e não parou de comer. Conversou com todos ali na mesa, mas a única coisa que o intrigava era: de onde vinha toda aquela atitude, ele não sabia aquelas coisas todas, muito menos como persuadir tantas pessoas a fazer o que ele queria. Illik olhou para ele sorrindo e disse:

_ O senhor sabe mesmo como contagiar os outros, digno de um membro da família Boncheümmer.

E a comemoração se estendeu até as 15:00 hrs, acabando com um empregado dormindo em cima do lustre, e duas servas procurando suas roupas na confusão. Antes que começasse todo esse alvoroço Illik levou Caliel até a varanda do andar de cima, onde o deitou na cadeira e ficou ao seu lado esperando ele acordar.

Depois de 20 minutos de sono causado pela bebida e comida em excesso, ele abriu os olhos devagar e viu primeiro as folhas da bananeira do lado de fora, e Illik ao seu lado, observando a paisagem daquela tarde nublada.

_ Onde eu estou? – Perguntou Caliel percebendo que sua cabeça doía muito quando ele falava algo.

_ Eu te trouxe para a varanda de seu quarto, assim que o senhor tentou alcançar o lustre com os dentes, em um acesso de loucura causada pela bebida. Aí o senhor caiu e bateu a cabeça.

_ Causei uma má impressão?

_ O senhor não precisa causar impressão nenhuma, além de todos estarem bêbados o senhor causou uma ótima impressão. Geralmente os nobres nem se dirigem aos criados como seres humanos, e o senhor senta com eles, e divide sua comida e bebida. Parece com seu pai. – Nesse momento Caliel parou de pensar em sua dor de cabeça e voltou toda sua atenção para o baixinho, dizendo:

_ Meu pai? Eu não o conheci – Caliel quase se esqueceu que o estavam confundindo, mas Illik agravou:

_ Exatamente, ele disse que quando chegasse esse momento, eu deveria mostrar-lhe aquilo... – E o homenzinho se levantou e entrou na mansão pela porta da varanda, chamando Caliel a segui-lo.

Após um tempo de caminhada por corredores escuros e apertados, descendo três escadarias eles se depararam com uma porta velha de madeira negra. O estranho era a ausência de maçaneta ou fechadura, só havia uma boca de dragão aberta esculpida em metal na parede lateral. Caliel não via motivo para aquilo, e naquele corredor não havia nada além daquela porta. Intrigado ele disse:

_ Que perda de tempo Illik, você me traz para um beco sem saída com uma porta que não pode ser aberta. – Então o serviçal parou na frente dele, e com o mesmo sorriso de quando estavam na casa de Gondolous ele disse, batendo as mãos:

_ Technik des Impulses - Mund des Drachen – Logo após isso ele pôs a palma de uma das mãos no peito, e puxou uma quantidade incrível de ar para os pulmões e fechou a boca. Depois ele pôs uma perna mais atrás e, colocando a outra mão aberta do lado da boca ele soprou todo aquele ar. Só que ao invés de sair ar, ele estava cuspindo fogo e esquentando a cabeça do Dragão até ficar laranja de tão incandescente. Caliel piscava consecutivamente, afinal aquilo não era algo possível, até que por fim Illik parou de cuspir aquele fogo amarelado repleto de labaredas rebeldes.

Um momento de silêncio pairou no ar, e com ele, a vontade de Caliel perguntar o que era aquilo. Mas foram interrompidos por uma série de estalos que foram seguidos do destravamento da porta.

Só então Caliel percebeu o quão resistente a porta era, sua espessura era de 70 cm, era maciça e revestida de metal, apesar de sua estrutura ser de madeira. Illik se precipitou entrando na sala, e chamando Caliel com aquela atitude cotidiana de autoritarismo irritante. Caliel nem hesitou mais, ele estava curioso, sedento por saber como aquilo aconteceu.

Passando pela porta ele se deparou com um cômodo muito alto, de formato circular. As paredes estavam completamente cobertas por livros em estantes. Um belo lustre de cristal iluminava a sala. Caliel estava cada vez mais impressionado, tanto que só pode olhar para frente após reparar em todos os afrescos do teto do salão. Foi seduzido por um livro no centro do mesmo, estava em cima de um pedestal ornamentado por pedras preciosas, a capa era de couro, e as páginas de papiro. Era todo escrito à mão, e Caliel reconhecia a língua, o alemão.

Illik precipitou-se novamente:

_ É lindo não? A Biblioteca Oculta dos Boncheümmer, séculos de conhecimento, especialista ou não. Todos os maiores segredos e técnicas estão nessas paredes.

_ E este livro? Porque está separado dos outros? E como você abriu aquela porta daquele modo? – Indagou Caliel demonstrando suas curiosidades.

_ Este é o Füher , o livro guia das 4 famílias puras e de toda nossa nação. Ele fica separado pois é a versão escrita pelo próprio Yuseff.

_ Quem é este Yuseff?

_ Ele é o pai de nossa família. O grande mestre dos pulsos, todo seu conhecimento está nesse livro, muitos matariam somente para poder olhar a capa. E agora ele é seu. – Só então Caliel percebeu que Illik mantinha distância do livro, e também percebeu no fundo da sala um sofá com aspecto confortável, de couro marrom, seguindo a coloração do salão.

O serviçal se dirigiu até o sofá chamando por Caliel, que se sentou relaxando, afinal ele havia recentemente comido e bebido até desmaiar, e ainda caminhou aquele tanto para chegar ali. Illik tomou a iniciativa:

_ Bem acho que lhe devo algumas explicações certo? Então vou começar contando um pouco sobre nós...

Capítulo 3 - Perguntas


Elefantinhos e beiradas bordadas, coxas carnudas e musculosas apesar de sua superfície lisa como seda. William estava pasmo, sentia algo como esferas, macias, porém sensíveis ao toque. Ele podia sentir coisas que nunca imaginou, seu corpo era muito mais sensível que em qualquer momento de sua curta vida.

Sua barriga estava magra e sinuosa, dura como uma pedra, suas unhas afiadas e grandes o desajeitavam, fazendo-o cortar a palma de sua mão ao fechá-la. Silenciosamente ele examinava cada parte deste corpo desconhecido, de pé, percebeu que seus glúteos eram firmes e musculosos assim como suas coxas lisas.

William estava pasmo, e em sua cabeça pensou em todas as possibilidades, lógicas e ilógicas para tal fato. A probabilidade era cerca de um em infinito, logo, impossível sob qualquer visão ou interpretação científica. A opção mais plausível ou favorável era de que William tinha entrado em coma e estava no mais profundo canto escuro de seu inconsciente.

Procurando a causa de seu coma William só conseguiu pensar na pancada que recebera naquela manhã, refletiu e só conseguia imaginar este motivo para ele estar delirando com o corpo daquela “maldita garota, que o chutou tão forte que danificou o cérebro do pobre William”.

Mas ele achava complicado sair da situação onde estava, primeiramente devido ao fato de ele estar com sua preguiça habitual. E também em função de ele não saber como chegou naquela situação. Por isso ele decidiu fazer o que todo garoto na sua idade com os hormônios acumulados faria no corpo de uma garota dentro de um vestiário feminino...

... Ele se deitou e ficou olhando as nuvens. Depois de um longo tempo deitado ele estava quase acostumado com aquilo. A camiseta e o short que ele usava, ele pegou emprestado do armário da garota. Até aquele momento ele estava até gostando daquilo. Mas como nada que é bom dura muito tempo, ele começou a se irritar.

Antes era um ou outro, mas depois de um tempo ele percebeu que todos os garotos que passavam ficavam olhando fixamente para ele, e aquilo começou a irritar ele gradualmente, que recolheu suas coisas e voltou ao vestiário. Afinal uma garota como aquela, vestida com um short curtíssimo de ginástica e uma camiseta curta e bem decotada, deitada na grama da entrada do colégio é algo que não se passa despercebido.

E para irritar mais ainda William, sua cabeça começa a latejar, suas mãos a tremer, e seu peito a doer, algo que levou William a cair de joelhos. De repente ele escuta algo, uma voz, macia como veludo, a mesma voz que ele tinha escutado antes, ela lhe dizia com rispidez:

_Sai logo do meu corpo seu imundo, não te ensinaram que é falta de educação ir entrando assim no corpo dos outros? – Pensando o mais alto possível William respondeu:

_Mais eu nem sei como eu entrei. Como eu vou sair?

_Não acredito que eu fui tomada por um iniciante. Escuta, você precisa ativar o caminho inverso. Só pense no seu corpo. – Obedecendo, William pensou em seu corpo com todas suas forças, e sentindo uma dor de cabeça, tão intensa, que o fez ficar desacordado, ele voltou para seu corpo.

Dias... Semanas, ou melhor, duas semanas se passaram desde aquele incidente que confundiu até mesmo uma mente como a de William e o levou a ficar inconsciente tanto tempo.

Tempo este que ele usou para olhar as nuvens de sua cabeça. Mas como todo sonho está fadado a acabar, William desperta e olha ao redor, só consegue enxergar um grande quarto branco e limpo, o qual ele julgou ser um hospital. Ou melhor, o hospital Mercury High.

Seu mordomo Alfred dormia em uma poltrona próxima a cama, sempre com a mesma postura que emanava certa autoridade, e um excesso de disciplina. William parou de olhar ao redor quando sua cabeça começou a latejar. Tão intensamente que levou Will a pensar que estava emergindo de um mar de lava, granulado por espinhos, que o puxavam cada vez mais para baixo. Em outras palavras, era a pior dor que ele já sentiu ou pensou sentir em toda sua vida.
Ele segurou com força nos beirais da cama dura do hospital, os aparelhos começaram a apitar e ele só viu várias pessoas chegando...

Mergulhado novamente no seu sonho, William se sentia aliviado, pois não sentia mais aquela dor terrível. Entretanto dessa vez ele não via mais só nuvens. Aliás ele não via nada, era só um grande e vasto local escuro, sem nada, mas mesmo assim William foi caminhando, e caminhando, até chegar em um lugar onde havia um tipo de rede. Tentado a saber o que era aquilo, ele a tocou, mesmo ela sendo cerca de 50 vezes maior que um prédio. Mas era tão bonita, com sua coloração levemente acinzentada, e milimetricamente enrolada e enlaçada em torno de seu próprio eixo.

Quando as pontas de seus dedos trêmulos tocaram a superfície, William percebeu que tinha um aspecto próximo a escamas de um crocodilo. E sem que ele tivesse tempo para perceber outra coisa a rede foi se desenrolando, de um modo tão rápido que Will mal conseguia acompanhar. Foi se ramificando por todo aquele vasto espaço, e Will imaginava que era como uma aranha tecendo sua firme e imponente teia, devido ao modo com que a rede agia.

Ele só conseguia pensar em uma palavra para descrever aquilo: “lindo”, mesmo achando que era impossível aquilo tudo ficar mais bonito, uma surpresa o impressionou. De repente todo aquele emaranhado, aquela teia, se “ligou” e ficou com um brilho tão intenso que Will foi forçado a fechar seus olhos.

O tempo que William passou de olhos fechados foi mais que necessário para que, ao abri-los novamente, se via em um local totalmente iluminado por tal teia.

Teia esta que não parava de executar impulsos eletromagnéticos, como ondas se chocando contra a areia da praia, ação que deixava Will intrigado, e com certo medo.

Uma sensação de poder emanava daquilo tudo, fazendo William querer tocar novamente. Mas aqueles impulsos o preocupavam, entretanto, a sedução era maior, ele se sentia quase hipnotizado. Então sem hesitar ele tocou novamente a teia, e, seguido por um clarão, Will foi jogado para trás cerca de 100 metros de distância.

Para surpresa de William a queda foi macia, devido ao aspecto aveludado que os impulsos emitiam na teia. Mas isso não foi a coisa mais impressionante, até que, mesmo William Darc’ que sempre foi um garoto com um intelecto muito acima do normal ficou perplexo.

Milhares... Milhões de informações passavam por sua cabeça, era como um banho em uma fonte de conhecimento. Física Quântica, Química orgânica, construção civil, direito internacional, mercado, tudo, desde artes até exatas, começaram a aparecer e passar por sua cabeça. E o mais impressionante foi que William as associava e entendia instantaneamente, em intervalos muito menores que um nano segundo.

Com tantas coisas se passando por sua cabeça ele não conseguiu perceber que a teia se expandia, mais e mais. Ela trocava de cor em um frenesi constante, do vermelho para o preto, e do preto para um azul estonteante.

Tais coisas feitas tão rápido simultaneamente esgotaram o corpo de William, e ele caiu sob seus joelhos.

“_ Senhor William, Meu Deus! O senhor está bem?” – Essas palavras ecoavam na cabeça do garoto.

“_ O senhor esteve cerca de 17 dias em coma desde que sua professora o encontrou na sala de aula tendo um colapso nervoso. ENFERMEIRA!!!!!” – Will quase chegou a desmaiar de novo devido a voz estridente e preocupada de Alfred em sua cabeça.

_ Ma...mas... Qual foi o motivo? Os médicos disseram algo? – Dizia William esgotando suas energias, pois ele queria acreditar que tudo aquilo era uma alucinação, porém, ele considerava a hipótese de tudo aquilo realmente ter acontecido.

“_ Os médicos disseram que o seu cérebro teve uma descarga eletromagnética muito intensa, eles não sabem como foi possível dentro de sua cabeça, mais dizem que você é sortudo de estar vivo, eu sabia que o senhor voltaria senhor William!"

Will ficou petrificado, afinal, tudo aquilo realmente tinha se confirmado, de repente ele percebeu que sabia onde, quando e o porque cada aparelho médico naquele quarto fora produzido, ele sabia o funcionamento, peças, modo de montar, desmontar, quebrar, queimar. Mas ele nunca tinha estudado aquilo. Ele sabia processo por processo, e aquilo o amedrontou. Pois ele visualizava o interior dos aparelhos, desde o impulso elétrico até o que aparecia no monitor do cardiograma.

Era assustador, ele sabia exatamente tudo...

...Mas o que ele não sabia, é que seus poderes não acabavam ali...

Capítulo 2 - Elefantinhos


Inglaterra, Século XXI

“_ Senhor William!"

_... Deixa-me em paz...

_ Mas já são 10:30...

_ OQUÊ? Já são essas horas?... - Estabanado William pulou de sua cama, e com um rápido movimento vestiu já sua blusa, e pegou alguns pertences... dizendo: _ Alf... Me passa a cueca rápido... - Influenciado com a pressa e o nevorsismo de william, o mordomo acaba pegando qualquer coisa na gaveta e jogando pra seu senhor.

_ ISSO NÃO! É uma calcinha da Isabel... me passa ali rápido rápido... - Apesar dos pequenos problemas, william se arruma de forma rapida ainda ajeitando os detalhes enquanto corria em direção a rua:

_ Me deseje sorte Alfred.

_ Passar bem senhor, e não se esqueça do lanch...

Pobre Alfred, do modo tão rápido que William saiu era mesmo impossível intervir. William Darc’ saiu aos passos e galopes de sua imponente casa próxima ao imenso Big Ben. No auge dos seus 16 anos , o futuro estudante da escola preparatória de Cambridge, que se tornaria um bom aluno aos olhos de seus professores.

Com os cabelos castanhos como o mel das mais nobres abelhas, que é ressaltado por seus olhos azuis preguiçosos e tímidos, boca fina e delineada, como se fosse desenhada á mão, pernas longas e um corpo delgado, digno de um corredor, ou até mesmo um lutador leve. O uniforme que ele veste ( muito amarrotado por sinal ) é o modelo de verão, portanto calças sociais com pregas simples e bem passadas por seu mordomo Alfred, de uma cor marrom escura, como um brasão de nobreza. Uma blusa social, amarrotada pela pouca dedicação em vesti-la, com suas mangas dobradas por cima dos cotovelos, lembrando uma camisa de manga curta. E não podemos esquecer a bela insígnia da escola, virada ao contrário, e jogada na camisa, sem nenhum esmero, deixando o imponente símbolo fora de lugar.

Mesmo com toda esta falta de esmero em sua arrumação, não deixava de chamar atenção das pessoas na rua, ou talvez seja este o motivo do qual tantas pessoas fitavam-no com o olhar. Concordemos que não é muito normal ver um jovem ás 10:30 da manhã correndo como um maratonista no centro de Londres.

Ofegante William chega ao metrô que fecha suas portas automáticas quase instantaneamente atrás de suas costas. Ele põe sua mochila de couro e alça transversal no chão, e se apóia em seus dois joelhos, que estavam sensíveis e trepidantes, devido ao tempo e velocidade que William correu. Quando o metrô começa a se mover ele, com um pouco do fôlego restaurado decide se sentar em um banco próximo.

Como estava cansado sentou com as pernas separadas, como se tivesse sido jogado no banco por algum brutamontes, abaixou sua cabeça e ficou olhando para o chão, com a boca aberta, soltando baforadas longas, estava visivelmente ofegante. Nem percebeu então que o metrô havia ficado lotado, em função das duas paradas que já tinha efetuado. Paradas estas, inexistentes no momento de restabelecimento de suas forças.

Ao recuperar seu fôlego ele se prepara para perdê-lo novamente. Levantando sua cabeça ele vê tudo escuro, e de repente: “ Elefantinhos...” ... sem entender olha para os lados, e nada vê, a não ser uma mancha escura, que olha fixamente, até que enfim ele percebe que é uma pinta. Entendendo sua situação um zumbido começa em seu ouvido, um frio mórbido sobe pela sua coluna. Examinando o tecido ao lado, percebe que se tratava de uma saia colegial, e seu maior medo é confirmado... Afinal uma saia tem uma dona, e a dona provavelmente estaria muito nervosa.

Na cabeça dele era uma menina feia e mal encarada, então já foi se preparando, e tratando de tirar logo a cabeça dali...

Engolindo seco ele abre os olhos, e tremendo, olha pra cima, vê uma garota linda, com cabelos pretos e curtos, que batiam em sua nuca, olhos verdes penetrantes, que laçaram Will em uma sedução quase instantânea. Sem perceber Will ruboriza suas bochechas, em função da beleza estonteante da garota, pobre Will, tal ação fez o semblante da bela menina, passar de surpresa para raivosa, com um olhar destrutivo.

Com os olhares fixos na menina, e mais preocupados em perceber sua beleza, que nos juramentos de morte que ela fazia com os olhos, Will percebeu que o rosto dela ficou imóvel... E ainda assim conseguiu escutar claramente:

“_ Pervertido asqueroso”

De repente todos pararam de falar no vagão, e com um grito de raiva, mudando a tonalidade de seu rosto do branco aveludado para o vermelho maçã, a garota desferiu um chute na fronte de Will, tão rápido e potente que deixou a face de Will marcada, e seu rosto colado no vidro.
Lentamente todos voltam a suas respectivas ações, a garota mudou de vagão, e Will permanecia estático. Ele não sabia se era em função do golpe repentino, ou devido a beleza estonteante da garota misteriosa. Só o que ele via eram elefantinhos...

Com o rosto anestesiado Will descolou sua face do vidro gelado do metrô lentamente. O automóvel trepidava e emitia sons estranhos. Mas nada disso se quer abalou o semblante amotivo de William, pois sua cabeça ainda estava nos olhos verdes e cabelos negros da linda garota que o agredira.

Enfim, sonhadores não tem carteira assinada, por isso William voltou a sua vida agitada de frenesi constante, saindo correndo do metrô ao perceber que estava extremamente atrasado, pois deixara passarem 2 pontos de seu destino. Com passadas longas e numerosas chegou a tempo de pular o portão e subir correndo as estreitas escadarias da requintada escola.

Ao chegar no andar de sua sala, e ao ver sua professora de pé ao lado da lousa negra, seus movimentos se retardaram aos poucos, e seus olhos estremeceram, ao fitarem a professora, que aparentava ser novata, por isso, se parecia com uma bela aluna. Ao passar pelo banheiro parou e lavou os cabelos, recompondo-se e estufando o peito, para parecer apresentável, e para finalizar, semicerrou os olhos antes arregalados, para dar um charme.

Ela era ruiva, de cabelos cacheados e pele branca como a neve, seus olhos eram castanho-claros, com uma tonalidade levemente esverdeada. Tinha os lábios carnudos e o corpo esbelto. O generoso decote em “V” realçava seus seios, redondos e maciços, e sua saia preta delineava-lhe as coxas e glúteos, ambas, musculosas e firmes. Tal combinação, tão perigosa fez William tomar vergonha do que estava fantasiando. E se recompôs para entrar na classe.

Após um longo suspiro, removendo as emoções de seu rosto, antes ruborizado, levando-o a restabelecer sua expressão cotidiana de indiferença. Deixou a maçaneta rolar por entre seus dedos finos, e entrou na sala com um aspecto que mais lembrava sono.

_ Olá senhor... ? – Ela perguntou, e fez William querer falar coisas absurdas, declarações, coisas de garoto, mais como sempre, os pensamentos, ele guardou para ele mesmo.

_É o esquisito professora – Disse Ben, o valentão da sala, levando todos a gargalhadas, e interrompendo os pensamentos de William.

_Meu nome é William Darc’. Desculpe pelo atraso, tive problemas para me despertar. – Disse Will com o peito estufado, fazendo todos se calarem. Ninguém nunca o tinha visto com aquele olhar, nem aquela postura, digna de um membro da realeza.

_ Sente-se então William, ou esquisito, não sei. Mas seja de modo discreto, já causou desordem o suficiente. – E William obedeceu acenando com a cabeça, e se sentindo extremamente humilhado. Algo que para ele era completamente incomum, considerando seu intelecto.

Depois de se sentar William finalmente pode jogar o peso do cansaço sobre seu corpo, se deitando em sua “confortável” cadeira de madeira dura. Sua cabeça não estava mais na sala de aula. Tudo o que ele via era a morena de olhos verdes.

Afogado em seu mundinho particular William não escutava nada da aula, que era de química, portanto, sem utilidade para sua vida, aliás, como todas as aulas, afinal ele já sabia tudo. Repassava vezes e mais vezes o ocorrido em sua cabeça, e a proximidade que ele estava das quentes e lisas pernas da estranha ficou em sua cabeça. Ele jamais estivera tão perto de uma garota.

Suas bochechas se ruborizaram e sua garganta secou, era como se ela estivesse o observando com aqueles olhos penetrantes novamente. De repente, no fundo do seu ser ele escuta claramente: “Pare de remexer essas memórias seu pervertido.” William se assustou e quase caiu da cadeira, e de repente, ele não estava mais na sala de aula, ele se sentia apertado e com uma dor de cabeça tremenda.

Olhando ao seu redor ele percebia que via vários armários cinza-escuros, alguns bancos com roupas jogadas, ele concluiu mais lento que o normal, que era um vestiário. Isso não era problema para ele, mas quando duas garotas envoltas por toalhas vieram em sua direção, ele desesperadamente colou seu corpo aos armários atrás de si. Ele tentou se esconder de todas as formas, mas o tiro saiu pela culatra quando ele empurrou o armário sem perceber e emitiu um barulho estrondoso.

As duas se voltaram para ele ao perceber o barulho, ele tampou os olhos com as mãos, mania que tinha adquirido com a vida. Agora quatro grandes olhos o fitavam, e ele quase entrou em desespero, suando frio observava cada movimento das duas, não prestava mais atenção nos corpos seminus de ambas, e sim nos lábios de uma delas quando ela pôs-se a falar:

_ Amy, você ta de TPM? , sério, você tá suando! – e a outra se pronunciou: – Troque de roupa logo, tem ensaio agora.

_ T.. tá bom... – respondeu Will sem entender nada do que se passava ali, apertando-se cada vez mais contra o armário onde estava apoiado. A melhor hipótese que ele pôde formular era uma confusão com alguma outra pessoa.

Logo após as duas virarem o corredor e saírem do vestiário Will solta a respiração e cai sob seus joelhos, e olhando para suas coxas ele percebe que o que ele via eram:

Elefantinhos...

Capítulo 1 - Fuga


Ucrânia, 1986

Preguiçosas e serenas as folhas se recusam a cair nesta tarde de outono em Chernobyl, um garoto, sentado no banco cinza concreto da grande praça, olhando para suas mãos, magras de tanto trabalho.

Nem uma lágrima, nem uma demonstração de raiva, de desgosto, nada. Mesmo com suas costas nuas expostas ao toque gélido de outono. Toque este que eriçava os pêlos remanescentes em seu corpo. Um corpo ainda novo, e já mutilado pelas árduas horas de trabalho nas chaminés daquela usina.

Uma mudança climática faz um calafrio subir por sua espinha, angulosa e pontuda, em função do contraste com sua subnutrição calamitosa. Tal mudança, do vento frio para o vento morno e afobado, reduzindo a umidade do ar ativava os mais internos e sensíveis sensores do seu corpo.

O garoto não gostava do calor, ele sabia que era devido ao resíduo liberado das majestosas chaminés. Tal sensação de calor fazia as feridas de seu corpo esguio se abrir e fechar, como a glote de uma imensa sucuri, regurgitando seu alimento, rejeitando-o, assim como o garoto queria rejeitar as lembranças, a dor. Mas o fruto do seu trabalho, o vapor poluído de sua chaminé o procura pela cidade, com saudade de seu toque sensível, ao limpar suas paredes de tijolos negros de tanta fuligem, e o faz lembrar-se das dores do passado, de seus deveres.

Com um olhar tuberculoso, o garoto olhava fixamente para aquela fumaça preta, como os pêlos eriçados de uma pantera, pronta para o ataque. Suas pupilas não se variavam sempre fixas e uniformes, durante não mais de cinco minutos achei que ele era um cadáver errante, relutando em tomar as rédeas de sua vida, admitindo sua derrota para a morte.

Ele era um vegetal, em corpo estava vivo, mas seus olhos só mostravam o vazio... Ele estava vazio.

Apresentava-se como Mártin, um garoto de 11 anos abandonado pelos pais quando tinha cinco
anos, só porque seus deuses, entediados com sua vida plena e eterna, escolhem um pobre garoto, perfeito à sua semelhança e imagem, e o degeneram, tornando-o um monstro, um fugitivo do tártaro, o qual seus pais não desejavam, em verdade, temiam-no.

Sempre fora dado a ele, um mendigo doente que ousava chamar a rua de seu lar, nada menos que rejeição e desprezo. Por isso, ao ser resgatado e integrado ao orfanato Pripyat todos chamavam-no de Mártin, pois o mesmo foi e é um mártir da inocência, da felicidade, da paternidade!

Pais não tinha mais. Os dois crápulas que o abandonaram, o próprio filho, são rebaixados de sua condição de pais a meros genitores. Aliás, cruéis genitores, que ousam dar a alguém como ele a infelicidade da vida, vida esta que, para ele, nada mais passa do que a morte.

Hipotecou sua liberdade para se acomodar em um cubículo, mas, sem sombra de dúvida era melhor que morar naquela praça ao vento do dia e à névoa da madrugada. E ele estava ali de novo, petrificado pelos olhos das medusas de suas lembranças, prendendo-o ao chão da realidade com seus tentáculos.

Um cristal tímido de gelo combate o vento que tenta impedir que ele se colida contra o rosto branco e pálido do garoto. Mas a natureza prevalece ao vento rebelde, e uma nevasca abraça Chernobyl.

Sentindo dó do garoto que, mesmo com aquele frio criogênico, permanecia lá, imóvel, afogado em seu próprio ser, mergulhado em suas mágoas e lembranças. Pensei em oferecer-lhe o casaco extra que eu carregava, recém retirado da lavanderia para minha senhora. Mas ele era forte demais para eu o insultar, sugerindo que ele se incomodava com aquele frio.

Surpreendo-me ao perceber que um tímido sorriso salta de seu rosto cadavérico. Era como uma rosa nascendo em meio aos pedregulhos, frios e cinzas, era realmente lindo de se ver, pois, durante esses 10 minutos em que eu estava o observando nada mais que tristeza e melancolia emanavam dele.

“Não!” Eu não podia insultá-lo daquela maneira, e não ia. Um velho como eu não podia fazer isso com aquele garoto. Mas eu precisava fazer algo, eu não podia só olhar, ele precisava de ajuda, mas seu orgulho não se permitia ser ajudado. Como ajudar alguém que não quer e repugna sua própria vida?

Refleti por um momento olhando suas necrosadas e finas canelas, seja em função dos furtos que ele executava, ou seja em função de sua doença. Cheguei à conclusão de que somente sentar ao seu lado e conversar com ele seria suficiente, tanto para aquecer seu pequeno corpo com a proximidade, tanto para resgatar sua alma daquela cripta onde estava.

De acordo com que eu me aproximava, percebia que ele tinha algo nas mãos, algo arredondado e voluptuoso, apesar de suas dimensões serem reduzidas. Cinco passos a frente percebo que se trata de um porta-fotos arredondado, com uma foto em seu interior, e inscrições antigas em sua cobertura. Não podia ver a foto, mas podia ler as primeiras palavras em Ucraniano: “Jazem em paz, e irão retornar”

Não entendo muito bem as inscrições, mas sinto um calafrio na espinha, isso me motiva a ir mais a frente, e sento ao lado do garoto. E com minhas cordas vocais ainda empoeiradas me ponho a falar:

_ Garoto, você está bem? – Nesse momento o céu, antes branco como a neve que o abandonava, apaixonada pela terra, indo a seu encontro passou a uma cor azulada, quase lilás, o garoto não respondia, checo e percebo que ele não tinha respiração.

O sonho dele tinha finalmente se tornado realidade. Mas o que me intrigava era a causa. Uma hipotermia era impossível em tão pouco tempo. Não! A neve não era a vilã, pelo contrário, ela era uma heroína, branca e delicada. Ela tinha se transformado na cripta daquela pura criança, daquele cadáver, que nada menos merecia, que uma bela morte, com um sarcófago límpido e cristalino como aquele, pelo menos isso ele merecia.

Uma vez aliviado, tiro meus olhos daquele garoto e só então olho ao meu redor, me surpreendo a ver tudo destruído, a usina, a praça, as redondezas, vejo uma fumaça de cor esverdeada e cheiro espinhoso, rançoso, um cheiro escuro, de morte.
A usina havia explodido, eu tinha certeza, e eu, estava fadado a perecer. Já não sentia meus pés, nem mãos. Estava imóvel, com um olhar vazio. Eu era agora um cadáver errante, que não queria me render a morte.

Já podia sentir meu corpo sendo dilacerado por dentro, era como palhaços brincando com facas dentro de meu ser. Eu sinto frio, e olhando para a chaminé principal da usina, em chamas, me surpreendo. Meus olhos me enganam quando alegam ter visto quatro sombras saindo correndo dali, afinal era impossível. Mas mesmo eu sabendo disso, lhes desejo sorte, sorte para que sobrevivam.

Um tímido sorriso eu consigo desenhar em meu rosto definhado, pelos longos anos a que foi submetido, pois minha vida, mesmo com seus altos e baixos, foi muito boa.

... Um porta retratos caído...

... o chão, repleto de neve ...

... e um abraço na senhora morte, que bela dama!

Introdução


“A Europa é um barril de pólvora esperando para ser explodido”
Winston Churchill

Pensamentos como este sempre estiveram presentes em todo o mundo, afinal, grande parte das grandes guerras da história tiveram a Europa como palco. Já era de se esperar, considerando a aglomeração de grandes nações em uma faixa de território muito pequena. É como pegar um grande número de predadores e aprisioná-los em uma pequena jaula.

Mas o maior problema da Europa, ao contrário do que muitos pensam, não é sua extensão territorial pequena, bem pelo contrário, nações de grande extensão territorial são muito mais críticas. Peguemos por exemplo o Império Alexandrino, sua imensa extensão tomou proporções tão magistrais que seu território se tornou “um barril de pólvora”, que implodiu no seio do império, o qual, até mesmo um homem que era venerado e considerado um deus não pode dominar.

Apesar de Alexandre ter falhado, sua derrota pode servir para ilustrar o maior erro deste grande estadista, e o maior defeito da Europa. Foi o fato de Alexandre desejar unificar dois mundos, com a intenção de criar um mundo homogêneo, perfeito, e de paz. Mas o problema é exatamente este, o mundo não quer paz. E se o mundo inteiro não quer a paz, quem diria o “centro” do mundo?

Esse desejo natural do ser humano de dominar, mais e mais, somado ao desprezo pela paz e pela vida catalisou a reação que explodiu o Barril em uma guerra de escala global. E já que o desejo de destruição por parte de todo o mundo era absurdamente grande essa guerra se estendeu por dois segmentos.

Tais guerras foram tão sanguinárias, que valores como a harmonia, o amor, foram trocados pelo ódio e pela ganância. Tudo isso para suprir os desejos sujos e empoeirados dos governantes, egoístas e egocêntricos que buscavam nada mais que a dominação mundial. Aliás, esse sempre foi o desejo de todo governante, desde os primórdios dos tempos, mas esse assunto é tema para outro livro.

Neste mar de sangue no qual o mundo estava ilhado. Dois nadadores, náufragos dos antigos valores, chegavam à costa, e ousavam chamar aquilo de seu. Mas uma mesma savana não pode ter dois leões. Então, após submeter todo o mundo a duas guerras sangrentas, nas quais tantos morreram, esses ditadores egoístas começam sua própria diversão pessoal, sua guerra particular.

Uma guerra que pode ser colocada acima de todas as outras, pois mesmo sem ataques ela pôde afugentar todo o mundo. Afinal, qual arma melhor que o medo? Medo que corrompia o mundo, um medo do Beijo gelado desta guerra fria, medo que emanava seu toque resfriado, gripando o mundo com uma hipotermia congelante. O medo, que antes partia do bocal do canhão, hoje vinha de algo muito menor, impossível de se ver, antes de sentir seu toque mórbido de dor e morte, tão rápido que matavam muitos sem chance de fugir. Medo que partia do micro, e não mais do macroscópico.

Algo tão pequeno que gerava um estrago tão grande, ou melhor, imenso, que podia ser visto a milhas de distância, um fungo de fumaça e detritos, que se instalava nos jardins das antigas nações, agora destruídas. Gerado pelos ovos dos pássaros de metal, que se instalavam nos bons campos, antes chamados de moradas e lares, ocupando as casas dos antigos moradores com destruição, e as chamando de suas. Chamavam a morte para visitar sua casa, e por ali ela ficava por dias... Meses... Anos...

Havia agora no mundo o medo do atômico, que matava e se parasitava em meio aos mortos, impedindo que eles se reerguessem...

... Mas o que as pessoas não sabiam, é que essa...

...Não era a arma mais forte...

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