Capítulo 9 - O Mortis

Eles acompanharam o diretor até passarem da Região Central para a Ala Italiana do colégio, sem trocar nenhuma palavra devido à perplexidade dos garotos. De todas as cinco áreas do imenso colégio a Italiana era certamente a mais bonita, lar das ciências relacionadas ao estudo, manipulação e compreensão da mente. Logo após o arco que delimitava a mudança de região estava a estátua imponente da matriarca do estilo, a dona do nome Fiorentini.

A quantidade de ouro usada na estátua em tamanho real estremeceu Caliel, pois ressaltava o olhar frio da bela mulher, de visão direta e aguçada, como se ainda pudesse ler a mente das pessoas que passavam por ali. O rio Vincci cortava toda a região, sendo possível transitar somente por ele ajudando a deixar a área ainda mais semelhante com a cidade de Veneza.

As águas translúcidas do rio tremeluziam de acordo com que o sol batia e era refletido, podendo dizer que um rio de prata líquida habitava aquele lugar. Era tudo muito harmônico e tranqüilo, assim como a gôndola de cedro que vinha deslizando na direção dos garotos.

Eles desceram a escada e entraram no barco assim como Helenus, que se sentou no banco de trás para guiar o veículo suave. O lento movimento permitia que os garotos apreciassem todos os detalhes das edificações de tijolos, o que facilitou a percepção de uma singularidade interessante.

_Nenhuma das casas tem janelas? – Refletiu em voz alta Hermes

_ Casas? – Disse Helenus com um sorriso no rosto – Nós estamos em uma parte dessa região onde ficam os laboratórios de pesquisa, em sua maioria os gases emitidos são nocivos à vida, por isso a ventilação desses prédios é subterrânea.

_ E onde estamos indo Senhor Helenus? – Inferiu Caliel

_ Eu já não disse que estamos indo fazer o teste de vocês?

_ Sim, mas afinal, qual o sentido desse teste? Não podemos ir direto para as aulas legais?

_ Até poderíamos, mas vocês precisam ser examinados para saber justamente para quais aulas vocês serão designados – Nesse momento a gôndola parou rouca ao lado de um edifício o qual tinha a fachada completamente revestida por tijolos cinza, dando ao galpão uma atmosfera pesada. Eles desceram e entraram apreensivos, passando por um ambiente à meia luz com a decoração nada agradável de experiências inacabadas.

Órgãos humanos flutuavam no líquido fétido e viscoso dentro de tubos suspensos no ar. Seguiram Helenus até o fim do corredor, onde o ambiente se afunilava em direção à um salão bem alto, iluminado somente por um pequeno vitral, que projetava estalactites multicoloridas no chão à medida que o sol se refratava através de seu comprimento.

Estava vazio, com exceção de uma cadeira simples e metálica, vazia. Os garotos estavam apreensivos e não sabiam o que esperar de Helenus, que vinha atrás deles, ele os tranqüilizou com um movimento das mãos e solicitou que Hermes se assentasse.

_ Este é o salão de diagnóstico, todos os alunos passam aqui para receberem o encaminhamento apropriado. – Hermes sentou apreensivo na cadeira sem saber o que esperar do tal teste – Pronto para começar? – Hermes assentiu com a cabeça.

Com um estalo de dedos um arco de pura eletricidade no chão circulando a cadeira, fios dessa mesma eletricidade subiram pela cadeira e se anexaram à pontos vitais. Testa, coluna cervical, coração, ponta das mãos, abdômen eram os locais com fios pulsantes mais intensos. Mesmo com toda aquela eletricidade Hermes não parecia sentir nada, de repente aquilo tudo se estabilizou e os espasmos elétricos cessaram mudando a sua cor azul celeste para um vermelho carmesim.

Um painel de mármore negro foi golpeado pelo fluxo de energia proveniente de Hermes, talhando várias informações, ornadas pelo símbolo de um círculo com um pentágono inscrito. Em cada vértice do pentágono havia um círculo vazio, Helenus devia ver algo diferente de Caliel, pois definitivamente ficou impressionado com aquilo, Caliel não fazia idéia do que aquilo pudesse significar por isso voltou toda sua atenção para Helenus quando ele disse: Set, fazendo a eletricidade se intensificar instantaneamente girando as órbitas dos olhos de Hermes, deixando-os totalmente brancos. O painel começou a traçar linhas partindo dos vértices do pentágono de modo a formar um triângulo de cabeça para baixo, também foram preenchidas três dos cinco vértices, antes vazios, posteriormente surgiram letras gregas ao lado de cada vértice preenchido. β, Δ, α, nessa ordem estavam presentes no painel negro, Helenus coçou o queixo intrigado.

_ Interessante... Agora só falta um toque digno de um nobre – Com um movimento da mão toda a figura brilhou em uníssono e a ponta do triângulo se fechou em um triângulo menor com a letra π em seu interior. – Parabéns você já tem seu passaporte, posso fixá-lo?

Hermes se conteve a assentir com a cabeça, parecia estar ciente de tudo que se passava naquela situação, como se tivesse sido minuciosamente instruído. Batendo as mãos Helenus pronunciou em tom totalmente audível:

_ Technische Wasserzeichen - Passport Mutable – Os impulsos antes Carmesins assumiram uma tonalidade cor de Jade, e tudo aquilo se focalizou no braço direito estendido do pequeno nobre formando um tipo de tubo cilíndrico, que permaneceu estático por alguns minutos, sendo depois condensado e totalmente consumido pela nova tatuagem localizada na parte interna do antebraço jovem do garoto. As órbitas oculares antes viradas se normalizaram e tudo voltou exatamente ao normal, salvo o novo ornamento do corpo de Hermes. Ele saltou da cadeira e olhou o amigo com um brilho nos olhos.

_ Com apenas 17 anos eu sou um pentágono Caliel, em três anos já vou alcançar o nível de Heptágono, ou seja, se eu me esforçar já poderei me formar com apenas 20 anos – Os olhos de Hermes buscavam claramente algum tipo de aprovação.

_Que ótimo! – Reagiu Caliel instintivamente, desejando não desapontar o bom amigo.

_ Agora é sua vez, garoto dos Pulsos. – Interrompeu Helenus para o alívio de Caliel que ate ignorara o modo preconceituoso o qual foi chamado pelo diretor. Ele nem pensou, rapidamente sentou-se, como quem brinca de jogo das cadeiras.

Só depois que já estava sentado Caliel percebeu que não queria fazer aquilo, afinal, qual farsante quer ser açoitado por raios que podem revelar sua verdadeira identidade. Mas era tarde demais, Helenus estalou os dedos e o arco de eletricidade surgiu novamente circulando a cadeira, assim como foi com Hermes, Caliel sentiu um leve formigamento quando os impulsos se ligaram aos seus pontos vitais. Helenus iniciou a segunda fase do processo, no entanto, assim que ele disse Set o arco circulou Caliel, de modo análogo ao que ocorreu com Hermes. No entanto, diferente do amigo de cabelos dourados, Caliel teve suas órbitas tomadas por um preto tão escuro quanto os confins mais longínquos do universo.

O silêncio tomou o salão por alguns minutos, Caliel assumiu uma caracterização sombria e misteriosa, bem diferente do ex-mendigo assustado que entrou no vagão prateado. Hermes tinha medo daquilo tudo, nunca tinha ouvido falar sobre aquela manifestação em um teste de Bongor, mas foi tranqüilizado pela face obviamente intrigada de Helenus que parecia se preocupar com algo muito mais importante que as órbitas de Caliel, era quase um sentimento de admiração que emanava do olhar do diretor. Mas o silêncio logo acabou, quando uma energia inigualável irrompeu o salão de canto a canto, e diferente de Hermes o símbolo de Caliel surgiu um pouco abaixo de seu peito, em seu abdômen, e se tratava de um simples círculo com algumas irregularidades, como se fossem “folhas” provenientes da imagem principal.

A energia podia ser sentida de onde Hermes estava, ela pulsava do peito de Caliel, que via a negritude dos seus olhos preencher todo seu pescoço e se dirigir até sua nova marca. O herdeiro da família dos portais estava atordoado, e não conseguia se mover sequer sua mandíbula para clamar pelo amigo, mas a falta de intervenção do diretor, que simplesmente assistiu aquilo tudo com um ceticismo louvável só intrigava o garoto dos cabelos dourados mais ainda, que decidiu, por motivo de força maior, simplesmente assistir o amigo, agora agonizante, devido ao preenchimento da marca com aquela energia estranha.

Arrisco dizer que se o momento não estivesse regado a gritos de dor de Caliel seria até bonito ver os impulsos estocando contra a pele do garoto e saindo como se fossem espalhados pela sua pele. Finalmente o último raio se alocou no lado esquerdo do peito de Caliel, completando a última folha. Os gritos se cessaram com a exaustão clara do menino que estava catatônico pelo que acontecera, imaginava consigo mesmo se aquilo tudo era um tipo de punição para quem ousava aproveitar uma oportunidade de se passar como um nobre, mas não, ele estava marcado assim como seu legítimo novo amigo.

Caliel não parou de tocar seu peito até construir a imagem mental do símbolo, o silêncio imperava no local, que se tornou muito mais sombrio desde o momento que chegaram. Helenus quebrou o clima dizendo com a voz audível e curiosa:

_ Interessante... – disse ele coçando o queixo. – Eu nunca vi um passaporte desses em lugar nenhum... O formato é completamente circular, não sei o que pode significar, mais se tomarmos como base a teoria dos vértices, como o círculo não possui nenhum, creio que signifique que o seu poder é ilimitado. – Para ser sincero, até mesmo eu achei que o poder de Caliel era algo singular, a primeira vista, no entanto esse fascínio estava fadado a acabar.

Uma sombra irrompeu da escuridão adjacente do local, com a altura aproximada de 2 metros de altura foi em direção aos três que se encontravam no centro do salão. O feixe de ar proveniente do deslocamento do corpo sibilava muito alto, demonstrando a velocidade insana daquela coisa.

Helenus se deslocou tão rápido quanto aquele borrão, abrindo os braços e protegendo os garotos. Tal ação repentina fez o borrão mudar de direção e seguir em direção à pedra de mármore. Com a iluminação cada vez mais presente, foi possível perceber que se tratava de um tipo de felino gigante, que golpeou rapidamente o bloco, fazendo uma energia negra pulsar e golpear o passaporte de Caliel.

O peito do garoto baqueou em uníssono com o grito do mesmo, levando-o ao chão, sentindo uma dor inimaginável. Helenus se deparava lado a lado com um felino, agora em posição defensiva com presas roxas e o corpo negro oscilante como fumaça.

_ Felinus Mortis. – Refletiu Helenus em voz alta, levando Hermes a esbugalhar os olhos imediatamente. – Animais formados de fumaça opaca e energia concentrada, uma obra-prima da bioespeccialia, somente especialistas de alto nível, como heptágonos podem invocar tal aberração. – Continuou o diretor, abrindo as palmas das mãos, direcionadas para o chão.

_ Technik des Exorzismus - Spectral Schwerter destruktiven Katze – pronunciou o diretor, fazendo selos circulares se formarem no chão, fechando um complexo emaranhado de ligações, acima de sua cabeça cinco círculos vazios se formaram, e com o movimento frenético dos dedos das mãos ele entrelaçava todas as linhas de modo a formar um selo mais complexo que o presente a seus pés. Ele posicionou esse selo na palma da mão direita e golpeou o chão, desbloqueando a técnica, fazendo duas espadas de energia anil pulsante surgirem do local.

O Mortis não hesitou em aproveitar a situação para atacar o flanco direito de Caliel que berrava de dor, mas antes que a aparição fizesse dano ao garoto, foi envolta em selos que se modificaram rapidamente em correias prendendo o animal na vertical em uma cruz de ferro. Este era o final da técnica de exorcismo usada pelo diretor, que uniu as duas lâminas e esquartejou o animal impiedosamente. Hermes fechou os olhos com tal brutalidade, e guardou sua ânsia de vômito para ajudar o amigo estendido no chão.

Ao chegar perto de Caliel, só podia ver o frágil amigo desmaiado, porém vivo... No entanto, seu passaporte antes incrível, se tornou apenas uma série de borrões, reflexo da quebra do mármore de transferência ainda conectado aos pontos do garoto. Caliel tinha no peito uma marca pouco vista, mas muito conhecida, a marca do impuro.

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