Capítulo 1 - Fuga

Posted on 17:39 by Arthur *(Sinapsys)*


Ucrânia, 1986

Preguiçosas e serenas as folhas se recusam a cair nesta tarde de outono em Chernobyl, um garoto, sentado no banco cinza concreto da grande praça, olhando para suas mãos, magras de tanto trabalho.

Nem uma lágrima, nem uma demonstração de raiva, de desgosto, nada. Mesmo com suas costas nuas expostas ao toque gélido de outono. Toque este que eriçava os pêlos remanescentes em seu corpo. Um corpo ainda novo, e já mutilado pelas árduas horas de trabalho nas chaminés daquela usina.

Uma mudança climática faz um calafrio subir por sua espinha, angulosa e pontuda, em função do contraste com sua subnutrição calamitosa. Tal mudança, do vento frio para o vento morno e afobado, reduzindo a umidade do ar ativava os mais internos e sensíveis sensores do seu corpo.

O garoto não gostava do calor, ele sabia que era devido ao resíduo liberado das majestosas chaminés. Tal sensação de calor fazia as feridas de seu corpo esguio se abrir e fechar, como a glote de uma imensa sucuri, regurgitando seu alimento, rejeitando-o, assim como o garoto queria rejeitar as lembranças, a dor. Mas o fruto do seu trabalho, o vapor poluído de sua chaminé o procura pela cidade, com saudade de seu toque sensível, ao limpar suas paredes de tijolos negros de tanta fuligem, e o faz lembrar-se das dores do passado, de seus deveres.

Com um olhar tuberculoso, o garoto olhava fixamente para aquela fumaça preta, como os pêlos eriçados de uma pantera, pronta para o ataque. Suas pupilas não se variavam sempre fixas e uniformes, durante não mais de cinco minutos achei que ele era um cadáver errante, relutando em tomar as rédeas de sua vida, admitindo sua derrota para a morte.

Ele era um vegetal, em corpo estava vivo, mas seus olhos só mostravam o vazio... Ele estava vazio.

Apresentava-se como Mártin, um garoto de 11 anos abandonado pelos pais quando tinha cinco
anos, só porque seus deuses, entediados com sua vida plena e eterna, escolhem um pobre garoto, perfeito à sua semelhança e imagem, e o degeneram, tornando-o um monstro, um fugitivo do tártaro, o qual seus pais não desejavam, em verdade, temiam-no.

Sempre fora dado a ele, um mendigo doente que ousava chamar a rua de seu lar, nada menos que rejeição e desprezo. Por isso, ao ser resgatado e integrado ao orfanato Pripyat todos chamavam-no de Mártin, pois o mesmo foi e é um mártir da inocência, da felicidade, da paternidade!

Pais não tinha mais. Os dois crápulas que o abandonaram, o próprio filho, são rebaixados de sua condição de pais a meros genitores. Aliás, cruéis genitores, que ousam dar a alguém como ele a infelicidade da vida, vida esta que, para ele, nada mais passa do que a morte.

Hipotecou sua liberdade para se acomodar em um cubículo, mas, sem sombra de dúvida era melhor que morar naquela praça ao vento do dia e à névoa da madrugada. E ele estava ali de novo, petrificado pelos olhos das medusas de suas lembranças, prendendo-o ao chão da realidade com seus tentáculos.

Um cristal tímido de gelo combate o vento que tenta impedir que ele se colida contra o rosto branco e pálido do garoto. Mas a natureza prevalece ao vento rebelde, e uma nevasca abraça Chernobyl.

Sentindo dó do garoto que, mesmo com aquele frio criogênico, permanecia lá, imóvel, afogado em seu próprio ser, mergulhado em suas mágoas e lembranças. Pensei em oferecer-lhe o casaco extra que eu carregava, recém retirado da lavanderia para minha senhora. Mas ele era forte demais para eu o insultar, sugerindo que ele se incomodava com aquele frio.

Surpreendo-me ao perceber que um tímido sorriso salta de seu rosto cadavérico. Era como uma rosa nascendo em meio aos pedregulhos, frios e cinzas, era realmente lindo de se ver, pois, durante esses 10 minutos em que eu estava o observando nada mais que tristeza e melancolia emanavam dele.

“Não!” Eu não podia insultá-lo daquela maneira, e não ia. Um velho como eu não podia fazer isso com aquele garoto. Mas eu precisava fazer algo, eu não podia só olhar, ele precisava de ajuda, mas seu orgulho não se permitia ser ajudado. Como ajudar alguém que não quer e repugna sua própria vida?

Refleti por um momento olhando suas necrosadas e finas canelas, seja em função dos furtos que ele executava, ou seja em função de sua doença. Cheguei à conclusão de que somente sentar ao seu lado e conversar com ele seria suficiente, tanto para aquecer seu pequeno corpo com a proximidade, tanto para resgatar sua alma daquela cripta onde estava.

De acordo com que eu me aproximava, percebia que ele tinha algo nas mãos, algo arredondado e voluptuoso, apesar de suas dimensões serem reduzidas. Cinco passos a frente percebo que se trata de um porta-fotos arredondado, com uma foto em seu interior, e inscrições antigas em sua cobertura. Não podia ver a foto, mas podia ler as primeiras palavras em Ucraniano: “Jazem em paz, e irão retornar”

Não entendo muito bem as inscrições, mas sinto um calafrio na espinha, isso me motiva a ir mais a frente, e sento ao lado do garoto. E com minhas cordas vocais ainda empoeiradas me ponho a falar:

_ Garoto, você está bem? – Nesse momento o céu, antes branco como a neve que o abandonava, apaixonada pela terra, indo a seu encontro passou a uma cor azulada, quase lilás, o garoto não respondia, checo e percebo que ele não tinha respiração.

O sonho dele tinha finalmente se tornado realidade. Mas o que me intrigava era a causa. Uma hipotermia era impossível em tão pouco tempo. Não! A neve não era a vilã, pelo contrário, ela era uma heroína, branca e delicada. Ela tinha se transformado na cripta daquela pura criança, daquele cadáver, que nada menos merecia, que uma bela morte, com um sarcófago límpido e cristalino como aquele, pelo menos isso ele merecia.

Uma vez aliviado, tiro meus olhos daquele garoto e só então olho ao meu redor, me surpreendo a ver tudo destruído, a usina, a praça, as redondezas, vejo uma fumaça de cor esverdeada e cheiro espinhoso, rançoso, um cheiro escuro, de morte.
A usina havia explodido, eu tinha certeza, e eu, estava fadado a perecer. Já não sentia meus pés, nem mãos. Estava imóvel, com um olhar vazio. Eu era agora um cadáver errante, que não queria me render a morte.

Já podia sentir meu corpo sendo dilacerado por dentro, era como palhaços brincando com facas dentro de meu ser. Eu sinto frio, e olhando para a chaminé principal da usina, em chamas, me surpreendo. Meus olhos me enganam quando alegam ter visto quatro sombras saindo correndo dali, afinal era impossível. Mas mesmo eu sabendo disso, lhes desejo sorte, sorte para que sobrevivam.

Um tímido sorriso eu consigo desenhar em meu rosto definhado, pelos longos anos a que foi submetido, pois minha vida, mesmo com seus altos e baixos, foi muito boa.

... Um porta retratos caído...

... o chão, repleto de neve ...

... e um abraço na senhora morte, que bela dama!

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